Autoria
Tradicionalmente, a autoria costuma ser atribuída prioritariamente ao responsável pelo texto verbal, reforçando uma hierarquia histórica que privilegia a linguagem escrita sobre outros modos de expressão (KLEIMAN, 2008). Entretanto, no campo do livro ilustrado, essa lógica se mostra insuficiente, pois a ilustração ocupa uma função muito mais profunda do que a de simples ornamento (SMITH JR., 1969).
A relação entre texto e imagem em livros ilustrados constrói-se como um inter-relacionamento dinâmico, marcado por tensões criativas e negociações de sentido entre os dois sistemas semióticos (NIKOLAJEVA e SCOTT, 2011). A imagem não apenas complementa o texto escrito, mas pode ampliá-lo, contradizê-lo ou mesmo propor novas camadas narrativas, criando outra história a partir do que está sugerido verbalmente. Assim, a ilustração se torna tão essencial para a experiência do leitor que o livro, sem ela, não existiria da mesma forma — ou talvez nem existisse (SMITH JR., 1969). Nesse sentido, a contribuição do ilustrador é constitutiva do sentido global da obra, justificando sua condição de coautor.

Capa de O passeio, de Pablo Lugones (texto) e Alexandre Rampazo (ilustrações). Observe que a diferenciação entre autoria e a ilustração não aparece em destaque na composição da capa.

Capa do livro Este é o lobo, de Alexandre Rampazo, que assina o texto, as ilustrações e a arte de capa.
Se avançarmos ainda mais nessa reflexão, também se pode questionar a autoria do designer editorial. O trabalho de projeto gráfico — ao articular texto e imagem, definir hierarquias visuais, escolher tipografia, diagramação e relações cromáticas — interfere diretamente na construção de sentidos do livro (SALISBURY e STYLES, 2012). Em muitos casos, projetos gráficos inovadores tornam-se decisivos para a narrativa visual e para a experiência de leitura, de modo que, sem essas escolhas, a obra ganharia outra configuração, outro ritmo, outro significado.
Essa complexidade aumenta ainda mais à medida que o número de pessoas envolvidas na produção do livro ilustrado cresce, e a colaboração direta entre elas se reduz, gerando múltiplas autorias e intencionalidades, o que resulta em ambiguidades e incertezas na legitimidade das interpretações (NIKOLAJEVA e SCOTT, 2011, p. 49). Por isso, a autoria do livro ilustrado deve ser compreendida como compartilhada e colaborativa, envolvendo não apenas quem escreve e quem ilustra, mas também — quando o projeto gráfico é relevante para a narrativa — quem concebe e organiza visualmente o livro. Todos esses agentes participam de modo indissociável na criação de sua linguagem, estética e potência comunicativa.
Como destaca Smith Jr. (1969, p. 164), nas obras infantis as ilustrações podem ser tão centrais para o interesse do leitor e para os objetivos do livro que seria impensável publicá-las sem elas. Muitos clássicos foram preparados em estreita parceria entre autor e ilustrador, ou, nos casos mais felizes, pelo autor-ilustrador que concebe de forma integrada texto e imagem, desenvolvendo ambas as linguagens em um só gesto criativo.

No livro Onde Vivem os Monstros, a capa evidencia de forma clara a autoria de Maurice Sendak tanto do texto quanto das ilustrações. Esse destaque reforça o reconhecimento do autor não apenas como escritor, mas também como artista visual responsável por dar forma ao universo fantástico da obra, valorizando a integração entre narrativa verbal e imagética desde a apresentação do livro ao leitor. Essa opção editorial reafirma Sendak como autor integral, cuja contribuição abrange todos os aspectos da construção narrativa e visual do livro.


O livro Bate-boca, de Claudio Fragata (texto) e Raquel Matsushita (ilustração), constitui um exemplo de metanarrativa na literatura infantil, ao brincar com os conceitos de autoria e cooperação criativa. A obra expõe, de forma lúdica, o conflito entre escritor e ilustradora, evidenciando a tensão que pode surgir quando diferentes vozes autorais compartilham o mesmo espaço narrativo.
Ao mostrar que a ilustradora decide, muitas vezes, contrariar as intenções do escritor – desenhando girafas quando ele pede gatos, – o livro problematiza a ideia de autoria única e indivisível. Essa dinâmica provoca no leitor a percepção de que a construção de um livro infantil não é linear nem unilateral, mas resultado de negociações, improvisações e confrontos criativos.
Além disso, Bate-boca torna visível o papel da imagem como agente narrativo, capaz de desafiar, complementar ou até subverter o texto.
