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Classificação etária

A classificação etária em livros ilustrados infantis envolve múltiplos fatores, como o conteúdo do livro, o desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças e as normas socioculturais vigentes. Embora sua função seja orientar pais, educadores e mediadores quanto à adequação de determinadas obras para faixas etárias específicas, tal prática apresenta desafios consideráveis.

Em primeiro lugar, o desenvolvimento infantil não ocorre de maneira uniforme. Crianças com a mesma idade cronológica podem apresentar estágios distintos de maturidade cognitiva e emocional (Carneiro; Manini, 2009 apud Albuquerque et al., 2014). Além disso, fatores como contexto familiar, experiência prévia, valores culturais e classe social influenciam a recepção e a interpretação das obras. Portanto, qualquer sistema de classificação etária precisa considerar essa heterogeneidade, evitando simplificações que comprometam a pluralidade de experiências de leitura.

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Obras de Jean-Michel Basquiat utilizada no livro A Vida Não Me Assusta, de Maya Angelou.

O pato, a morte e a tulipa, de Wolf Erlbruch, evidencia a importância de considerar também a complexidade temática e a carga emocional da obra. Embora graficamente acessível, o livro aborda com delicadeza a morte e o luto. Casos como este demonstram que a definição de faixas etárias deve ser flexível e contextualizada, respeitando o potencial de elaboração simbólica das crianças e o papel fundamental do adulto na mediação da leitura.

O livro Sagatrissuinorana, de João Luiz Guimarães e Nelson Cruz, reconta a fábula dos Três Porquinhos com o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho como pano de fundo. A linguagem inspirada na prosa de Guimarães Rosa e o diálogo com questões sociais e ambientais exigem um leitor com algum repertório de leitura e maturidade para lidar com temas complexos. Apesar de ser um livro ilustrado, não se trata de uma obra voltada apenas ao público infantil. A combinação entre símbolo e realidade, fantasia e tragédia, faz deste título uma leitura potente, indicada também para jovens e adultos.

A Guerra, de André Letria e José Jorge Letria, é uma poderosa denúncia visual e poética diante do inominável: a experiência da guerra. A cada virada de página, o leitor é lançado em uma topografia do desastre, onde emergem medos, censuras e destroços — rastros de um evento que devora tudo ao seu redor. Reconhecida internacionalmente, a obra recebeu diversos prêmios, entre eles o Prêmio FNLIJ 2020 de Melhor Livro de Literatura em Língua Portuguesa. 

A própria noção de adequação de conteúdo varia entre culturas e épocas, refletindo valores e crenças de grupos sociais distintos (Salisbury, 2013). Temas como violência, sexualidade, religiosidade ou morte podem ser tratados de forma polêmica ou educativa, a depender do contexto de produção e recepção. Salisbury (2013) destaca que livros infantis já abordaram, historicamente, temáticas controversas — racismo, doença, luto — de maneiras não necessariamente moralizantes ou didáticas, questionando assim a ideia de que exista um único padrão de “apropriado para crianças” (p. 113).

Outro ponto central é a complexidade dos livros ilustrados, que se estruturam a partir de múltiplos códigos — verbais e icônicos — em permanente interação (Nikolaeva; Scott, 2011). A ilustração não se limita a adornar o texto, podendo complementá-lo, contradizê-lo ou expandi-lo, criando camadas de leitura que, muitas vezes, ultrapassam a compreensão literal do texto (Kleiman, 1995). Essa característica amplia a faixa etária potencial do público, considerando inclusive a leitura compartilhada com mediadores adultos (Linden, 2011), que podem contribuir para interpretações mais aprofundadas (Salisbury, 2013).

Nesse contexto, o trabalho do designer editorial torna-se relevante para garantir a legibilidade, a navegabilidade e a experiência estética do leitor. Conhecer as faixas etárias indicativas pode auxiliar o designer a ajustar aspectos gráficos — tipografia, cores, hierarquia visual, elementos de navegação — para atender melhor às habilidades de leitura das crianças em diferentes estágios de desenvolvimento (Burt, 1959 apud Coutinho; Silva, 2007; Tinker, 1969). Ainda assim, o excesso de restrições pode limitar a liberdade criativa e a inovação no projeto gráfico, resultando em soluções visuais empobrecidas.

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As vantagens de alinhar o design à faixa etária incluem maior adequação ao público-alvo, melhor orientação da leitura e maior sensibilidade ao tratamento de temas delicados. Por outro lado, a classificação pode levar a generalizações excessivas e restringir a experimentação estética, sendo necessário equilíbrio entre parâmetros técnicos e liberdade de criação.

A bibliodiversidade — compreendida como a diversidade de gêneros, formatos, linguagens, temáticas e abordagens — surge como princípio essencial para ampliar as oportunidades de leitura e promover um repertório cultural plural (Carrasco, 2014; Pimentel, 2016). Segundo Altamarino (2015), bibliodiversidade e qualidade são requisitos básicos na formação de bibliotecas que realmente atendam às demandas das infâncias. Além disso, a literatura, enquanto expressão artística, atua no deslocamento da linguagem cotidiana para uma dimensão estética, despertando empatia, imaginação e encantamento (Amaral; Baptista; Sá, 2021).

Finalmente, ressalta-se o papel dos mediadores — pais, professores, bibliotecários — no compartilhamento, na mediação e na seleção de livros, assegurando diálogos significativos sobre conteúdos sensíveis e potencializando as múltiplas leituras possíveis. Assim, a classificação etária deve ser entendida como ferramenta flexível e orientativa, nunca rígida, reconhecendo as múltiplas infâncias e os diversos modos de se relacionar com o livro ilustrado.

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